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03/05/2019

Christian

Contextualizar treinamento de força no universo do ciclismo não é tarefa fácil. Primeiro, porque não é simples inseri-lo de forma correta para que seus efeitos sejam positivos, segundo, porque o senso comum é arraigado de lendas preestabelecidas… “já uso as pernas para pedalar, não preciso fazer musculação” ou “a musculação deixou as pernas pesadas, amarradas”, “meu desempenho piorou depois que comecei a fazer musculação” são frases comuns nas rodas de ciclismo dos mais diferentes níveis. A discussão sobre fazer treinamento de força (a musculação é apenas um dos métodos) e desempenho no ciclismo é antiga, recorrente e cercada controvérsias e também faz parte do universo de outras modalidades.

Para iniciar de forma assertiva minha opinião sobre o tema, transcrevo a frase inicial de Timothy Suchome em sua revisão “The Importance of Muscular Strength in Athletic Performance”, publicada na Sports Medicine, em 2016: “Baseado na extensa literatura, parece NÃO HAVER substituto para o aumento da força muscular quando objetivamos o aumento da performance e simultaneamente a redução do risco nas mais diversas modalidades”.

No ciclismo, certamente não é diferente. Isso porque o desenvolvimento da força depende de estímulos coordenados – repetição, tempo de tensão muscular, sobrecarga crescente – e na dinâmica das modalidades esportivas esses estímulos acontecem em qualidade, quantidade e frequência necessários.

Força muscular é uma combinação complexa de fatores centrais (sistema nervoso) – recrutamento neuromotor, taxa de recrutamento, sincronização de recrutamento das unidades motoras e inibição neuromuscular – e periféricos (sistema músculo-esquelético) – arquitetura e tamanho da secção transversa do músculo e rigidez do complexo músculo-tendíneo.

É possível treinar de força na própria bicicleta. Ao enfrentar uma subida íngreme, fazendo dezenas ou centenas de pedaladas, treina-se uma particularidade de força que é a resistência. Porém, mesmo que aparentemente fazendo uma força aparentemente gigantesca, o fator sobrecarga de treinar força em cima da bike é limitado ao peso do ciclista+bike e a inclinação da subida.

Essa limitação veda qualquer possibilidade de treinar outras manifestações da força muscular que inclusive têm impactos maiores na performance no ciclismo – força máxima e força explosiva – gerando economia de esforço e melhorando da taxa de desenvolvimento de força. Treinar essas duas particularidades de força em cima da bike é totalmente contraproducente (senão impossível) e o universo da academia oferece métodos de treinamento de força muitos mais simples e eficientes nesse sentido, através das máquinas de musculação, pesos livres e saltos.

O início de treinamento de força é caracterizado com ênfase na resistência, que são as séries de 15-20 repetições com intervalos de 45-75 segundos e utilização de 50-60% da carga individual máxima. Parece receita de bolo, mas adaptações dessa prescrição têm efeitos positivos sobre todos os fatores citados no 4º parágrafo, construindo alicerce para novos pilares.

Por mais estranho que pareça esses “novos pilares” não estão associados a morfologia muscular, pelo contrário, treinamento de força com muitas repetições e/ou que promovam hipertrofia muscular tem interações negativas com ciclismo. O alto número de repetições e intervalos de descanso curtos geram fadiga e consomem glicogênio intramuscular (fundamental para os treinos de bike), promovem dano tecidual, geram hipertrofia muscular que leva aumento do peso corporal – indesejado por 10 em cada 10 ciclistas – e diminuem a densidade mitocondrial, além do que é possível treinar resistência de força em cima da bike com um nível de especificidade muito maior que dentro da academia.

As principais contribuições do treinamento de força no ciclismo residem nos aspectos neurais, no aumento da capacidade e da eficiência do sistema nervoso recrutar fibras musculares. Exercícios com séries de poucas de repetições (3 a 5), com longos intervalos de recuperação (150-180s) e cargas próximas a máxima (90-95%) e os saltos (pliometria) são os principais métodos para se atingir esses objetivos.

As séries de força máxima têm efeito importante na economia de esforço através de 2 mecanismos: inibição do reflexo antagonista e diminuição da força relativa durante a pedalada.

O reflexo antagonista se manifesta sempre que um grupo muscular faz contração sobre uma articulação, agindo no de forma oposta ao movimento principal, como se fosse um “freio de segurança”. Assim, ao contrair os quadríceps durante uma extensão de joelho no ciclo da pedalada, os ísquio-tibiais automaticamente contraem-se diminuindo o potencial de força do movimento de extensão. O treino de força máxima diminui a ação do músculo de oposição.

Para compreender a diminuição da força relativa, imagine que um ciclista de 70 Kg sobre uma bike de 10 kg esteja subindo uma serra de 10% de inclinação e a força máxima que ele gera ao pedalar é de 100 kg.  A cada pedalada ele está carregando cerca de 43 kg, (43% da sua força máxima). Se ampliarmos sua força máxima para 150 Kg, ele estaria 28% da sua força máxima. Isso implica em um número menor de fibras musculares recrutadas a cada pedalada, em um menor consumo de oxigênio na mesma intensidade de esforço, preservando os estoques de energia e a capacidade contração muscular.

Um segundo fator de ganho de performance resultando tanto do treinamento de força máxima como da pliometria que é o aumentado taxa de desenvolvimento de força. No ciclo da pedalada aplica-se força em cada ângulo do pedivela por frações de segundo e em período de tempo tão curto é impossível materializar todo potencial de força sobre o pedal, porém é possível aumentar a intensidade de força que se aplica naquelas frações de segundo transferindo mais potência ao pedivela a cada contração muscular.

Há ainda que se considerar que o dano tecidual, fadiga muscular, hipertrofia, depleção de glicogênio desses treinos são baixos, minimizando reflexos indesejáveis nos treinos de ciclismo.

De fato, esses mecanismos vêm sendo mapeados e testados constituindo um corpo importante de evidências que mostram a relação positiva entre treinamento de força e performance no ciclismo. Já foram reportadas melhoras:

– 8% na performance no contrarrelógio de 45 minutos em ciclistas jovens de alta performance;

– 6,5% no contrarrelógio de 40 minutos de ciclistas mulheres bem treinadas;

– 4,5% na produção de potência na intensidade do limiar de lactato e 3,0% no sprint máximo de 30s (wingate test) em ciclistas de nível competitivo internacional;

–  4,5% na economia de esforço na intensidade de 70% do VO2max, 4,7% na eficiência de trabalho na intensidade de 70% do VO2max, 6,9% na potência na intensidade de 70% do VO2max e 17,2% no tempo de esforço até a exaustão na intensidade de 70% do VO2max em ciclistas bem treinados.

Tanto do ponto de vista teórico, como nos resultados que as pesquisas vêm mostrando, da observação empírica e dos resultados das intervenções de treinamento de força que realizamos com nossos alunos, não há dúvida sobre o potencial de aumento de performance do treinamento de força realizado com as metodologias corretas. Esses efeitos parecem ser mais robustos sobre os ciclistas iniciantes, que tem um campo de adaptações mais vasto, mas também proporcionam vantagens competitivas importantes naqueles bem treinados, que já esgotaram grande parte da sua treinabilidade.

Assim considerando todas as variáveis relacionadas performance aqui abordadas e também as relacionadas à prevenção de lesões, saúde e longevidade (não consideradas nesse texto), o treinamento de força é coadjuvante essencial na preparação de ciclistas dos mais diversos níveis e com os mais distintos objetivos.

Obviamente há desafios na introdução do treinamento de força no cotidiano maluco dos ciclistas amadores e profissionais, no sentido de conciliar as horas em cima da bike com os treinos de academia, com as provas, sono, alimentação, trabalho, características pessoais, estilo de pedalada, tipo de competição, é necessária supervisão, cuidado na execução, respeito aos limites individuais… mas isso é diversão certa para nós fisiologistas, treinadores e preparadores físicos. Pedalem, treinem, se divirtam, vão para as travessias, desafios e competições e confiem nos seus treinadores, that´s the way.

Por: Ricardo Adamoli Simões

Suchomel, T et al. The Importance of Muscular Strength in Athletic Performance, Sports Med (2016).
Suchomel, T et al. Importance of Muscular Strength: Training Considerations; Sports Med (2018).
Yamamoto, LM et al. The Effects Of Resistance Training On Road cycling Performance Among Highly Trained Cyclists: A Systematic Review; J Strength Cond Res. (2010).
Sunde, A et al. Maximal Strength Training Improves Cyclin Economy in Competitive Cyclists. J Strength Cond Res. (2010).
Rønnestad, BR et al. 10 Weeks of Heavy Strength Training Improves Performance-Related Measurements in Elite Cyclists.
Raastad et al. Strength Training Improves Cycling Performance, Fractional Utilization of VO2 max and Cycling Economy in Female Cyclists. Scand J Med Sci Sports. (2015)
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CHRISTIAN DRUMOND

Cardiologista, Pós graduado em Medicina do Esporte, Coach, Ciclista “Old School”, Apaixonado por MTB, e Fundador do Segredos do Mountain Bike.

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